“Se quiseram matar a jararaca, não fizeram direito, pois não bateram na cabeça, bateram no rabo, porque a jararaca está viva.”
Essa imagem zoológica foi o ponto metaforicamente culminante de um discurso que Lula fez no dia 4 de março de 2016, algumas horas depois de ter sido coercitivamente conduzido para prestar um depoimento à Polícia Federal. A coerção foi uma decisão desnecessária, contraproducente e autoritária de Sérgio Moro. Até ali, o ex-presidente ainda não havia anunciado a intenção de se candidatar.
Escrevi, então, um texto a respeito e ousei discordar da larga maioria dos analistas, que viram um Lula abatido, acuado, destruído. A imagem da jararaca rendeu pencas de ironias. Eu preferi enxergar o risco. Título do meu post então: “Discurso de Lula segue organizado e perigoso. Atenção para a metáfora da serpente”.
Muito bem. Quase dois anos se passaram. Na quarta próxima, três desembargadores do TRF-4 — João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Laus — julgam o seu recurso contra a condenação decidida por Moro: nove anos e meio de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá. Aquele viria a ser um ano terrível para o PT. O partido seria esmagado pelas urnas nas eleições municipais. Mas a jararaca…
Observei, naquela data, que o discurso do chefão petista mantinha o poder encantatório. Ele começou pedindo desculpas à mulher, aos filhos, aos companheiros, lembrando, numa oração intercalada, que Marisa tinha sido empregada doméstica aos 11 anos. A mesma Marisa que apareceria mais adiante, em sua fala, pondo flores num decanter para vinho, porque, afinal, tal peça era coisa de ricos instruídos. E ela era apenas a ex-empregada que pisara nos palácios em razão do marido — ele próprio! — presidente.
Lula voltava a tocar a tecla do messianismo. Era o homem do povo que conseguira superar as barreiras. Todo Messias tem de convencer o seu público de que “esteve lá” — seja esse “lá” onde for — em nome de todos. Se quiserem recuar mais no tempo, lembro: Moisés teve de convencer seu povo de que Deus o havia escolhido para passar as leis eternas, gravadas na pedra.
É claro que o messianismo de Lula contava e conta uma história mundana do futuro. Ele queria e quer que seus admiradores e eleitores vibrassem por ele ter tomado vinho por eles, comido caviar por eles, frequentado palácios por eles. Na fala do petista, se ele chegou lá, então todos chegaram. Fez a cabeça de milhões assim.
Parte da força de Lula decorre do fato de que ele se considera, sim, um ungido, um escolhido. Quando as agências de classificação de risco promoveram o Brasil a grau de investimento, disse: “E quis Deus que fosse exatamente nesse momento que um presidente de sorte assumisse a presidência da República. E Deus queira que o Brasil nunca mais eleja um presidente que não tenha sorte”.
Sim, havia certa ironia na fala, dirigida àqueles que afirmavam que ele era sortudo, não competente. Lula absorveu a crítica e transformou a “sorte” que lhe atribuíam numa boa sina e num traço distintivo.
Naquele dia, atacou a suposta perseguição de que seria alvo, empreendida pela imprensa, e disse que só estava sendo investigado porque os donos de sempre do Brasil estavam reagindo aos “milagres” — ele usou essa palavra — que ele promoveu no país. Citou ao menos cinco. E o primeiro, notou, foi ter sobrevivido. Deixou claro, e isto era mesmo verdade, que estava preparado para aquela ação. Decidiu jogar no tudo ou nada. Apontava, então, uma certa letargia em seu partido. Precisava de um elemento forte o bastante que reacendesse a militância. E Moro lhe forneceu.
O PT ainda desceria aos infernos em abril daquele ano, quando a Câmara deu autorização ao Senado para abrir um processo de impeachment contra Dilma Rousseff, o que a levou ao afastamento do cargo e à perda do mandato, em agosto.
Quando Moro condenou Lula a nove anos e meio de cadeia, em julho do ano passado, a jararaca já tinha ressuscitado eleitoralmente. O petista via realizada a profecia que fizera sobre si mesmo. Obra do petismo? Em larga medida, não! A Lava Jato como um todo, com destaque para o próprio Moro e para Rodrigo Janot, empreendia, já de forma explícita, a sua cruzada contra os políticos e a política, o que tinha me levado a cravar, em coluna na Folha do dia 17 de fevereiro: “se todos são iguais, então Lula é melhor”.
Escrevi naquele texto:
“A esquerda está, sim, combalida. Ocorre que a sobrevivência eleitoral daquilo que Lula representa depende menos das pantomimas da companheirada do que da espantosa combinação de ignorância e voluntarismo de correntes que se alinham à direita.
“A esquerda está, sim, combalida. Ocorre que a sobrevivência eleitoral daquilo que Lula representa depende menos das pantomimas da companheirada do que da espantosa combinação de ignorância e voluntarismo de correntes que se alinham à direita.
Algumas falhas de nossa formação se revelam de forma dramática. Temos autoproclamados liberais que se mostram incapazes de defender, num regime democrático, o Estado de Direito. Ao contrário: cedem ao alarido dos que querem enforcar o último deputado com a tripa do último senador. Se, na fantasia de esquerda, uma certa “elite” rapace responde por todos os males do Brasil e dos brasileiros, para essa direita tosca, o inimigo são os “políticos”.
Lula margeava, então, os 20% das intenções de voto. Animada pelo MPF, a direita xucra, também por intermédio de movimentos de rua, resolveu aderir ao “Fora, Temer”. Na sequência, o petista passou a flertar com os 30%. Veio a patuscada golpista do caso Joesley, protagonizada por Janot, Edson Fachin e Cármen Lúcia — com o apoio editorial dos veículos das organizações Globo —, e o demiurgo passou a enxergar os 40%, batendo todos os eventuais adversários no segundo turno.
Em suma, a jararaca estaria eleita se a disputa fosse hoje. Quem menosprezou a metáfora estava, obviamente, errado.
E chegamos, então, à próxima quarta-feira. Mais um trecho:
“Talvez a Justiça impeça Lula de ser candidato. Se for da lei, cumpra-se. Mas meu rigor não contenta. O tribunal faria, nesse caso, o que boa parte do povo não queria que fosse feito. Só um imbecil se daria por satisfeito.”
“Talvez a Justiça impeça Lula de ser candidato. Se for da lei, cumpra-se. Mas meu rigor não contenta. O tribunal faria, nesse caso, o que boa parte do povo não queria que fosse feito. Só um imbecil se daria por satisfeito.”
E ainda naquela coluna profética:
“Ah, em tempo: alguém pode dizer que, ruim como é, o governo Temer é que deve ser responsabilizado pela eventual ascensão da esquerda. Discordo. Dado o que herdou e o que conseguiu realizar até agora, o governo é bom. De resto, Lula não está forte porque esquerdista, mas porque populista. Em certa medida, poderia ser Bolsonaro –que disputa o segundo lugar com Marina.
O populismo de direita, associado ao lava-jatismo, é que está minando a credibilidade da atual gestão e ressuscitando a esquerda. Afinal, conservadores que não buscam preservar nem as instituições hão de conservar o quê?
Não sobra nem o juízo”.
“Ah, em tempo: alguém pode dizer que, ruim como é, o governo Temer é que deve ser responsabilizado pela eventual ascensão da esquerda. Discordo. Dado o que herdou e o que conseguiu realizar até agora, o governo é bom. De resto, Lula não está forte porque esquerdista, mas porque populista. Em certa medida, poderia ser Bolsonaro –que disputa o segundo lugar com Marina.
O populismo de direita, associado ao lava-jatismo, é que está minando a credibilidade da atual gestão e ressuscitando a esquerda. Afinal, conservadores que não buscam preservar nem as instituições hão de conservar o quê?
Não sobra nem o juízo”.
Não escrevo para animar torcida. Escrevo para privilegiar o pensamento.
Deixo as previsões erradas para os salta-pocinhas que disfarçam interesses pecuniários com antilulismo e antipetismo. A minha aversão ao partido não é um meio de vida. É uma convicção. Pago caro por ela. A direita de chanchada, ao contrário, ganha dinheiro com seu vomitório irresponsável. Eu acerto. Eles só podem se orgulhar dos seus erros bem-remunerados na bolsa de especulações.
A única coisa que posso dizer em seu benefício é que são mais safados do que burros.
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